sexta-feira, 15 de novembro de 2013


     É a ação da faca afiada, porém um pouco cega. É o tiro da arma que dispara de repente. É o sangue lavado da vítima. É a tinta da minha caneta agora. É a opressão do espaço vazio das páginas seguintes. E a ânsia e o desespero das palavras para ocupá-lo. É a falta de espaço. É o proibido. O ilegal. É a loucura, as narinas sangrando, os olhos abertos, as mãos inquietas e a alma errante. É o rascunho. E a preguiça com a necessidade de escrever.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013


Para Bruna.


     "Mas acho que o que eu mais quero", ela disse, "é que as pessoas sintam quando lerem meu mangá", e virou-se mais para si mesma do que para a quem dizia: "Eu sei que cada uma vai sentir algo diferente, mas, enfim", e suspirou, tirando um cigarro do maço. "Não sei explicar isso", acendeu-o, "mas deixa eu ver", tragou fundo e lentamente, olhando para a luz amarela do abajur que envolvia os dois ali, soltou a fumaça. "Sabe quando você lê alguma coisa, ou ouve alguma música, e você se sente abraçado por elas?" A fumaça do seu cigarro circulava entre eles, sob o círculo de luz. "Tipo quando eu leio Cecília Meireles, eu me sinto muito abraçada pelas palavras dela, e por ela. Eu sei que é meio estranho", e parou, observando a fumaça dissipar-se no ar. "Mas até mesmo quando escuto algumas músicas eu sinto essa sensação de abraço." E então, encostando-se nas almofadas, com o cigarro pendendo abandonado entre os dedos, fechou os olhos e viu a luz amarela fixada em suas retinas. "Agora, por exemplo, eu tô escutando uma que me faz sentir assim."

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Um dia


     Neste dia, quando acordou, encontrou a sua identidade bem diante de si. Tomou-a em comunhão e dançou, dançou, dançou com ela em seus braços, sozinho sob o teto ensolarado do seu quarto. Mas ao abrir a porta para sair, num assalto o vento de repente a descolou de sua pele como uma folha se desprende de uma árvore... Com um grito, correu atrás dela, tentando alcançá-la, prendê-la no espaço vazio que tinha sido deixado, embora não a enxergasse, não soubesse pra onde ela tinha ido. Perdido na névoa do seu fôlego e na chuva dos seus olhos, foi só ao parar que finalmente a reencontrou: o tempo todo ali, bem debaixo de seus pés, na poça de água, sorrindo mesmo enquanto chovia. 

domingo, 16 de junho de 2013

Vênus entrou em Câncer


     “Vênus entrou em Câncer”, o seu amigo lhe diz. Agora tudo faz sentido, você pensa, deitando-se na cama após acender um incenso e pensando que mão poderia repousar sobre o seu peito, ofegante, o seu peito, dizendo-lhe: Calma, eu tô aqui, e você dorme – até acordar num sobressalto porque alguém bate na porta do seu quarto. Você levanta, olha o incenso ainda aceso, Mal dormi, pensa, e abre a porta: é ele. Você o deixa entrar, fecha a porta ofegante, ele põe a mão no seu peito e diz: Calma, eu tô aqui, sim, é exatamente o que ele diz, mas ao deitarem-se na cama e tirarem a roupa, você sabe que depois será deixado nu, enquanto ele se vai vestido. E se lembrará então de que Vênus entrou em Câncer e acordará sobressaltado do pesadelo, depois cansado e triste, enrolando-se na coberta e sentindo seus próprios braços em torno do corpo. Mas enquanto sonha, finalmente desperto, verá os planetas transitarem pelas órbitas do seu eixo: seus olhos, dois sóis. 

quinta-feira, 30 de maio de 2013


     Nas alturas de nossa embriaguez, ele continuava dizendo que todo mundo é louco, e eu lhe dizia que sim, sim – todo mundo é louco. As pessoas são incompreensíveis, nada é como esperamos que seja. E enquanto observávamos, preocupados demais com a qualidade do metal que encontraríamos sob a terra, no final nos vimos no meio de uma terra que nós mesmos devastamos. A festa tinha acabado então. Pois se todo mundo é louco, eu lhe dizia na volta, com os bolsos vazios, isso nos torna mais loucos ainda.